Para àqueles que sentem de aprender mais a fundo, sobre a cosmologia Huni Kui, e sua relação com a Ayahuasca (Nixi Pae), este artigo pode servir como base de estudo, pois apresenta a perspectiva própria da etnia através da sua arte (música e pinturas), que expressam a relação do mundo visível e não visível, de humanos e não humanos, e a Força. 

O sonho do nixi pae.
A arte do MAHKU – Movimento dos
Artistas Huni Kuin.

Amilton Pelegrino Mattos
Universidade Federal do Acre

Resumo: Inspirado no filme O sonho do nixi pae (2014), o artigo percorre a trajetória do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin, traçando paralelos entre o percurso do grupo e a travessia mítica dos huni kuin que atravessaram o jacaré-ponte. O artigo se dedica a pensar a música e suas transformações em artes visuais e audiovisual desde uma teoria da tradução nativa.

O sonho do nixi pae.

O vídeo O sonho do nixi pae2, de 2014, recompõe a constituição e o percurso do MAHKU, movimento dos artistas huni kuin, ao longo dos últimos cinco anos.
Em 2013, na Universidade Federal da Bahia, quando Ibã faz a primeira apresentação do MAHKU, que acabara de se constituir como associação, ele entoou o pakarin (canto) do kapetawã (jacaré grande ou jacaré-ponte). Poucas semanas depois, na exposição Mira, Artes visuais contemporâneas dos povos indígenas, no Centro cultural da UFMG, Belo Horizonte, onde estávamos na companhia dos artistas huni kuin Bane e Keã, Ibã tornou a cantá-lo na cerimônia de abertura.
Ano passado, o MAHKU participou da exposição Histórias mestiças, no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo. Dos 15 desenhos realizados para a ocasião, 14 foram huni meka (cantos de ayahuasca) e um dos desenhos o cantomito do kapetawã. O vídeo mostra nosso encontro com um amigo na exposição, o antropólogo Bruce Albert. Em certo momento, mostrando o desenho do kapetawã e lendo a legenda que pode ser entendida como história dos antigos, Ibã diz a Bruce: shenipabu miyui… shenipabu miyui somos nós…

Travessias

Neste artigo trataremos de travessias, de traduções, de antropologias. Ele consiste num apanhado de rizomas que proliferaram no tempo em que editamos o vídeo O sonho do nixi pae. Há uma leitura paralela artigo-vídeo: o que escrevemos aqui pode afetar a leitura do vídeo, assim como o que escrevemos é um desdobramento do texto audiovisual.
O projeto Espírito da Floresta resulta do trabalho de pesquisa desenvolvido pelos autores no contexto da Licenciatura da Universidade Federal do Acre, Campus Floresta. O vídeo O sonho do Nixi pae resulta do trabalho do LABI – Laboratório de Imagem e Som da UFAC – Floresta.
Assim como o vídeo, este artigo imagina o MAHKU e sua trajetória como uma travessia similar à travessia mítica dos huni kuin no lombo do kapetawã.
Por fim, à nossa maneira, podemos dizer, como já foi dito, escrevemos a dois, mas somos sempre ajudados, aspirados, multiplicados.

História

Vamos falar do povo huni kuin (kaxinawa). Tudo começa com Tuin Huni Kuin (Romão Sales). Tuin é filho de Tene (Chico Curumin). Eu, Ibã, sou filho de Tuin. Foi com ele que aprendi a cantar: pakarin, huni meka, os cantos que ele cantava no fim da tarde, alegre na sua rede, ensinando seus filhos. Formei professor, aprendi a escrever, adquiri um gravador para gravar meu pai. Aprendi a pesquisar com meu pai. Ele passou a vida aprendendo os cantos, os rituais e outros conhecimentos dos huni kuin mais velhos e mais brabos que chegavam de todas as partes para escapar das correrias, abrigando-se no rio Jordão, no seringal herdado por nossa família de patrões brancos depois de muito trabalho e sob a identidade de caboclos brasileiros, trabalhadores e civilizados. Em 1984, o seringal se torna terra indígena e os huni kuin passam a ser reconhecidos novamente como povo indígena. Tuin agora estava pronto para ensinar tudo o que guardou, tudo o que tinha aprendido. É momento de retomar práticas e rituais que haviam sido perdidos. Os professores das escolas huni kuin empenham-se nesse processo e tem por referência o velho Romão Tuin.
Sou professor indígena desde 1983. Nesse projeto coletivo de pesquisa dos professores, assumi os huni meka, os cantos do nixi pae (bebida ayahuasca), aquelas músicas que mais me impressionavam. Passei anos registrando esses conhecimentos e transcrevendo. Em 2006, publico meu primeiro livro, Nixi pae – O espírito da floresta.
Antes de começar a estudar na licenciatura indígena, em 2009, o txai Amilton chegou na aldeia Chico Curumim. Nesse mesmo ano elaboramos nosso projeto de pesquisa na universidade da floresta. Nossa ideia era continuar pesquisando os cantos huni kuin. Norteava-nos a grande aceitação do livro que tinha atingido diversas terras dos huni kuin e causado impacto sobretudo nas aldeias cuja língua hatxa kuin rareava.
E não era apenas a língua que era assumida pelos jovens, era a língua estranha dos cantos, a linguagem poética que há pouco constrangia. Junto com a vontade de cantar, estimulada também pelo daime dos brancos e a presença dos instrumentos como maracás e violões, os huni kuin também retomaram suas pinturas corporais, voltando a utiliza-las com frequência não apenas nas aldeias, mas a exibi-las publicamente nos municípios próximos às aldeias.

Antes de reencontrar Ibã no Jordão, em 2009, subi o rio Tarauacá com Bane. Chamavam a atenção as atas desenhadas que Bane produzia em reuniões nas aldeias do Jordão.
Desde o início trabalhamos com o audiovisual. Quando nos chegaram os primeiros desenhos de Bane – experiência inicial de 10 desenhos em 2007 – passamos a trabalhar com a seguinte composição: desenhos, canto e comentários, vídeo. Organizamos um Encontro de artistas no Jordão em 2011, coordenado por Bane e Ibã. Durante 10 dias nos dedicamos a desenhar os huni meka (cantos da ayahuasca) de Tuin registrados no livro de Ibã. Ainda em 2011, construímos nosso sítio virtual (www.nixi-pae.blogspot.com.br) e fizemos nossa primeira exposição em Rio Branco. Em 2012 fomos convidados por Bruce Albert e Hervé Chandés para expor na Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, na exposição Histoires de voir, com essa série de desenhos produzidos no Encontro. Para essa ocasião realizamos o vídeo O espírito da floresta5. Mais importante que nossa projeção para fora da aldeia e do país, essa primeira exposição internacional projetou-nos para dentro. Reunimo-nos na aldeia em agosto de 2012 e criamos o MAHKU, Movimento dos Artistas Huni Kuin, coletivo de artistas e associação.

Cantos-desenhos

Nosso trabalho tem origem, portanto, na convergência de canto, desenho e vídeo. Os desenhos traduziam a música numa visualidade própria a esse universo musical e o vídeo fornecia recursos para evidenciar essa relação. O vídeo possibilitava fazer convergir imagem e canto, coloca-los paralelos ou justapostos.
A visualidade, construída com os recursos do paralelismo e justaposição (CESARINO, 2006), é característica principal da dimensão verbal dos cantos huni meka.
Os comentários aos cantos (pôr no sentido, ver adiante) feitos por Ibã no vídeo, simulam essa articulação na medida em que não explicam, e sim criam um texto paralelo à imagem-música, tal qual o desenho propõe em relação à música-texto.
Se os textos dos cantos são marcados por paralelismo e justaposição, essas características não vão faltar aos desenhos e pinturas. O mesmo vale para a linguagem formulada por Ibã para pôr no sentido, como fica claro na sua fórmula que explora a parataxe para nos aproximar dessa linguagem e apresentar a convergência canto/desenho: nai manpu yubekã, céu pássaro jiboia.

Miração

Mesmo se tratando de cantos, a percepção visual é fundamental tanto nas palavras que são cantadas como no ritual do nixi pae que gira em torno das visões. As visões ou mirações não são visões cotidianas, elas consistem num código sensorial outro.
Bane refere-se à sua iniciativa de desenhar os cantos nesses termos: eu vi que o que estava faltando era ver a miração (O sonho do nixi pae, 2014).
Marca da visualidade está na definição dos três tipos de cantos huni meka: entre os cantos de chamar a força e diminuir a força estão os dautibuya, cantos de miração, que recobrem a maior parte do ritual de nixi pae. Um exemplo: um dos cantos mais importantes ensinado por Tuin, hawe dautibuya, refere-se àquele que vem adornado, enfeitado, transformado, potente. Outros exemplos: txai puke (Bane, 2007), dua meke (Bane, 2010), hawe dautibuya e dua meke (Mana, 2014). Trata-se de cantos de dar a ver, chamar ou potencializar a visão. Os desenhos são descritivos, mas não se trata de descrever o que se vê, e sim de alterar a visão para dar a ver algo que não pode ainda ser visto.
Portanto, não se trata da visão cotidiana, mas de uma visão transformada, aprimorada, talvez uma hipervisão, que também precisa ser traduzida ou transcriada, tal como se dá com a poesia dos cantos tornada desenhos no papel e no giz, nas tintas e na tela. Em outro momento, Ibã (O espírito da floresta, 20127) comenta esse trabalho artístico:
Então foi isso que eu sonhei dentro da miração, dentro do meu sentido, que dá pra fazer isso e mostrar, para aquele que não chega, aquele que não conhece ainda bebida ayahuasca, dá pra entender; tem gente que ficava com medo, por isso que eu fiz desenho; na hora que você convidava pra realidade, pra mostrar o trabalho, tem gente: ah não, tenho medo, eu vejo cobra, talvez eu veja alguma coisa do futuro; dá pra entender melhor aquele que nunca tenha conhecido, seja huni kuin ou não: ah, isso que está falando na música…
Há uma travessia a ser feita. As tradições poéticas ocidentais ignoram até hoje as artes verbais dos povos ameríndios. Um amadurecimento recente na forma de ver esses povos e seu pensamento cria condições para uma tradução dessa poética. De Lévi-Strauss ao perspectivismo ameríndio8, há um trabalho de tradução primeiro, que abre caminhos para propostas. Assim que a etnologia passa a aceitar essas outras antropologias implicadas no pensamento ameríndio, a tradução perde seu caráter unidirecional. O tradutor ocidental ao traduzir o texto indígena para sua poética pode suprimir esse trabalho de tradução primeiro. Portanto, esse movimento não pode restringir-se à inclusão de uma literatura indígena.

Traduzir é transformar, criar. Os huni kuin, numa antropologia reversa, estão traduzindo à sua maneira, para nós, não apenas sua poesia e sua poética, mas também a escrita, as artes visuais e mesmo a escola, a pesquisa, a universidade.
A tradução que nos propomos liberar aqui não é apenas uma tradução dos cantos huni kuin nos termos da tradução servil10 dos brancos. Os huni kuin, pela perspectiva ou devir-animal da jiboia, traduzem, através de seus cantos e desenhos, outras possibilidades de mundo. Ao traduzir, reinventando sua realidade a partir da realidade não indígena, traduzem-se a si próprios, intensificando-se como verdadeiros, como huni kuin.
Essa música vocal do huni meka opera com diversos recursos que compõem intensidades, campos de força: repetição de palavras e de sons, vocalizações, aceleração e desaceleração, movimento e repouso, quebra do som e extensão etc.
Associados a esses efeitos sonoros, as imagens descritas nas palavras dos cantos vão compondo imagens que se relacionam com a miração. Essa noção de miração será aqui combinada com o tornar visível de Paul Klee. Referimo-nos a um material visual que deve capturar forças não-visíveis (Deleuze e Guattari, 1997: 158).
Como dizem Deleuze e Guattari, não estamos mais tratando de uma relação matéria-forma. Ela se apresenta aqui como uma relação direta materialforças; captar as forças do cosmos numa obra; para tal obra é preciso meios muito simples, muito puros, quase infantis, mas é preciso também as forças de um povo, um povo por vir.
Além de conduzir a uma perceptividade do visual própria do jogo de imagens dessa poesia, bem como dos efeitos sonoros empregados nesses cantos para modular intensidades, as imagens das pinturas constituem uma linguagem própria de um processo de transcriação interespecífica: trata-se de traduzir o que foi apreendido com exeika, a jiboia. A fórmula nai manpu yubekã, configura com sua parataxe, sua contiguidade e sobreposição, uma linguagem poética própria.

Link para o artigo completo: aqui.

Produção em vídeo “O Sonho do Nixi Pae”: aqui.

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